segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Entrevista com Fred Lyra - por Bruno Vitorino


Fred Lyra. Foto: Eládio Ferreira.

A pluralidade musical é uma das marcas mais indeléveis do Recife. Do frevo ao free jazz, a cidade acolhe uma gama de artistas que enveredam pelas mais diversas possibilidades expressivas que a música proporciona. Contudo, boa parte dessa produção é sistematicamente ignorada pela mídia convencional e jaz desconhecida pelo grande público. Buscando registrar/documentar o trabalho desses artistas, dou início a uma série de entrevistas com músicos pernambucanos. Nessa primeira edição, converso com o guitarrista Fred Lyra que fala sobre sua trajetória, projetos, planos e referências, muitas referências.

A teoria na composição musical não existe. No entanto, compor envolve uma profunda intuição de teoria” - Igor Stravinski

Bruno Vitorino - Primeiramente gostaria de perguntar: por que a guitarra? Fale-nos um pouco de sua trajetória.
Fred Lyra - Meus pais escutavam em casa, desde que eu era pequeno, muita música: Jackson do Pandeiro, Milton Nascimento, Bach, Debussy, Youssou N'Dour, Cesária Évora, música de várias culturas, países e línguas diferentes. Depois veio a guitarra e o rock: Black Sabbatt, Rage Against The Machine.  Através de  John McLaughlin conheci o jazz e a música clássica Hindustani. Depois que entrei na faculdade me aprofundei mais na música erudita e hoje divido meu tempo entre esta e a música improvisada, além de pesquisa em música indiana, africana e brasileira. Gosto muito de Bartok, Messiaen, Bach, Debussy, Ligeti, Stravinsky, Egberto Gismonti, Michel Leme, Steve Coleman, Steve Lacy, John Coltrane, Keith Jarrett, Afrocuba de Matanzas, Shahid Parvez, Benerjee. Destaco alguns professores que tive como: Thales Silveira, Sérgio Dias, Leonardo Melo, Itiberê Zwarg, Dierson Torres, Heraldo do Monte, Helder Araújo,e sobretudo, as aula com Steve Coleman, uma verdadeira mudança de como enxergar a música e a vida como um todo. Participei de vários grupos e toquei com músicos como Tim Berne, Paul Scea, Giuliano Modarelli, Ralph Alessi, Ramiro Mussoto, além ter morado um ano na Inglaterra e França. Atualmente toco com Mojav Duo, Nebulosa Quinteto, André Maria e Quarto Aberto, além de um trio de standards em bares e restaurantes. Também dou aulas na escola Tritonis.
BV - O projeto Mojav Duo traz uma formação bastante particular. Como surgiu a idéia de um dueto entre guitarra e bateria?
Mojav Duo por Eládio Ferreira
FL - Temos esse duo desde o começo de 2009. A primeira inspiração veio da música clássica indiana onde a formação básica é de percussão mais um instrumento melódico. No início, trabalhamos com um repertório de standards de jazz, brasileiros e cubanos. Tocamos muito Baden Powell, por exemplo. Tocamos esse repertório em algumas casas e bares do Recife. Em seguida, passamos a focar apenas nas nossas composições. Atualmente temos feito alguns festivais.
            O duo é um grande laboratório para testarmos novas ideias e conceitos. Aprendo muito tocando com Hugo Medeiros, pois ele é daqueles músicos inquietos que sempre aparecem com um desafio, uma nova ideia, o que faz com que as músicas sempre se renovem e nunca estejam engessadas. No Mojav Duo estamos aptos a experimentar e misturar todos os universos musicais pelos quais trafegamos. Algumas músicas são completamente arranjadas, outras abertas a muita improvisação. Desde o principio trabalhamos elementos da música africana, indiana e da improvisação jazzística. Hoje em dia estudamos bastante conceitos que aprendemos nos encontros que tivemos com Steve Coleman.
BV - As músicas do dueto fogem ao modelo AABA em 32 compassos e das cadências em II - V - I. Como é o processo composicional de vocês?
FL - Testamos muita coisa nos ensaios e trabalhamos vários conceitos. Às vezes, por exemplo, passamos horas tocando um único padrão rítmico. Tocamos composições minhas, de Hugo e parcerias nossas. Matenho uma gig semanal de standards, adoro tocar e aprender com eles, mas não é o tipo música que escuto dentro de mim. Minhas composições são inspiradas em tudo que estudo e escuto mas sobretudo no uso de modos e ciclos rítmicos e no conceito de centros tonais e modais. Creio que as influências do jazz, música erudita, brasileira, indiana, afro-cubana têm o mesmo peso.

BV - Se por um lado o Manguebeat deu destaque à produção musical pernambucana no cenário nacional, por outro a aprisionou numa abordagem regionalista caricata. Como é transitar fora desse padrão estético?

FL - A música é maior do que qualquer região, país ou corrente estética. Cresci ouvindo Chico Science & Nação Zumbi, Mestre Ambrósio, vou sempre ao carnaval, São João, trabalhei há três anos num laboratório de etnomusicologia onde faço pesquisas sobre maracatu junto ao CNPq (tendo inclusive sido premiado em congressos), gosto muito do mestre Valter (do maracatu Estrela Brilhante do Recife) do Bongar, Rabecado, Saracotia e vários outros. Tem muita gente que nasceu, vive e respira esses estilos. Outros estão neles apenas por questões mercadológicas. Procuro fazer a música que vivo. Ninguém precisa ficar se afirmando brasileiro ou pernambucano. Já somos desde que nascemos. Esta música é riquíssima por si só, não precisa desse tipo bandeira.
BV - Steve Lacy falava que "um músico que não toca está morto". Há julgar pelos poucos espaços para música instrumental no Recife, o que fazer para não morrer musicalmente?
FL - Buscar novas parcerias e tocar cada vez mais. A música é essencialmente ao vivo. Qualquer lugar pode receber música instrumental e qualquer pessoa é público em potencial. Steve Lacy, Michel Leme, Hermeto Pascoal, o AACM são inspiradores, pois sempre batalharam por isso. Existe público, mas ele, infelizmente, está distante. Há dois anos produzo a adaptação recifense do projeto "Jazz lá em Casa" e temos tido ótimos resultados. Para muita gente foi a primeira oportunidade de assistir à música improvisada. Um grande problema da música instrumental e da erudita é essa elitização que ambas sofrem. Como se fossem algo inacessível, uma coisa de outro mundo, "cool", intelectualoide, música para músico. E não é nada disso, é uma música como qualquer outra, possível de ser escutada e vivenciada por qualquer pessoa, de qualquer idade, renda e localidade. Mas, essa música não interessa ao sistema e este se encarrega de manter as pessoas longe dela. Nós, músicos, agravamos esta situação endossando esses conceitos, mantendo-nos distantes do público e uns dos outros. No momento que nos unirmos e passarmos a atuar como uma comunidade criativa, iremos aumentar significativamente os espaços, as possibilidades de trabalho e o público para esta música. Torná-la parte do cotidiano das pessoas. Creio que fazer a música em que acreditamos deve sempre ser o objetivo principal.
BV - Os dois meses de temporada no Teatro Joaquim Cardozo – julho e agosto - proporcionaram ao Mojav Duo a oportunidade de se apresentar constantemente e aprofundar seus experimentos. Qual o balanço que você faz desses concertos?
FL Foi uma experiência rara e engrandecedora. Fizemos nove concertos diferentes  nos quais podemos desenvolver mais a nossa música. Podemos chegar a um novo público e compartilhar a música com várias pessoas diferentes. A cada noite tivemos um ou mais convidados participando dos concertos. Tivemos os músicos: Cecília Pires, Caio Lima, Alípio C Neto, Luciano Emerson, Paulo Arruda, Mateus Alves, Enoque Ribeiro, Bruno Vitorino, Walter Areia e Wallace Seixas. Além destes convidamos a bailarina Liana Gesteira, o artista plástico Daniel Araújo e o grupo de teatro performático Totem, com as performers Lau Verissímo, Taína Verissímo, Gabriela Holanda e Juliana Nardin, além do diretor artístico Fred Nascimento, que também fez um som conosco. Também gravamos alguns vídeos com o cineasta Luís Henrique Leal, com a ajuda de Paulo Sano e Diogo Guedes. Foi muito gratificante fazer um som e aprender com todos, esperamos fazer mais em breve. 

BV - Quais os planos para o futuro?


FL - Basicamente estudar, tocar e compor mais. Esperamos poder gravar o primeiro disco do Mojav Duo até o final do ano. Também conhecer e tocar com outros músicos que estejam nesse mesmo caminho e colaborar mais com outras artes: dança, teatro, cinema, as artes plásticas são universos maravilhosos. Acho que o caminho da música é cíclico, não varia muito, mas, vai se tornando cada vez mais profundo e exigente. O universo musical é tão vasto que uma vida é muito pouco para o compreendermos bem, estou apenas iniciando nele, tem muita coisa para ser aprendida, escutada e escrita.


2 comentários:

  1. Um artista completo está sempre em busca de renovação e aprendizado.

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  2. Gostei bastante da entrevista! A diversidade musical do entrevistado é bem abrangente e achei bem partinente a opinião sobre o formato de música criado pelo mangue beat. Boa, Brunão!

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