domingo, 27 de dezembro de 2015

O Enigma de Star Wars – por Bruno Vitorino




Se vens a uma terra estranha
Curva-te
Se este lugar é esquisito
Curva-te
Se o dia é todo estranheza
Submete-te
- És infinitamente mais estranho

Orides Fontela


Querido leitor,

Você poderia me dizer, por gentileza, onde está passando o novo Star Wars? Falo sério! Porque, a julgar pelo filme a que assisti hoje no cinema e pela euforia generalizada que viraliza nas rede sociais deste vilarejo, só posso ter visto um outro filme que não O Despertar da Força. Sinceramente! Não consegui fazer a relação entre o que se passou na tela e o regozijo coletivo que faz a cabeça de nerds, saudosistas e coolhunters. E antes que reclame de minha costumeira chatice e me pergunte todo afetado, digo: sim!, desde de criança sou um grande entusiasta da saga Star Wars, vi não sei quantas vezes todos os filmes e, embora desconfiado, estava bastante curioso com uma nova trilogia dirigida por J.J. Abrams. Mas, o resultado foi para mim uma decepção absurda! Desapontamento ainda mais gritante por ser eu, ao que parece, e para minha surpresa, um raro espécime de entusiasta frustrado com o novo filme, já que todos, público e especialmente a crítica, só têm mil maravilhas a dizer sobre a película.

Bem, os entendidos de cinema podem até vir aqui se meter em nossa conversa para querer vomitar toda sua verborragia enfadonha e saracotear sua autoridade risível, tal como um pavão velho e depenado, para justificar a glória cinematográfica que é O Despertar da Força. Mas eu, este bicho estranho que não se deixa enquadrar por tendências, modismos e oba-oba, amante do universo Star Wars de longa data, digo com muita tristeza que o filme é um desastre. “Queiram ou não queiram os juízes” do gosto. Ponto final.

Nada lá faz sentido, meu caro. A começar pela trama solta e confusa em que os eventos simplesmente acontecem por si. Não existe uma construção narrativa que explique, por exemplo, por que a Primeira Ordem existe e como ela conseguiu se estruturar de uma maneira tão grandiosa a ponto de por a República em xeque do jeito que faz. Vale lembrar que O Retorno de Jedi dá um fecho épico - e sem furos - a toda a saga: após uma expansão político-militar contundente capitaneada por Darth Sidious (o imperador) e Darth Vader, o Império é derrotado pela Aliança Rebelde; sua arma suprema, a estrela da morte, destruída; e seus líderes, mortos. A paz se impõe sobre a galáxia, os símbolos do Império são destroçados, Luke Skywalker se firma como a nova esperança da Força, Leia assume sua realeza e a República se refaz após um período de totalitarismo. Como pode agora, meu Deus do céu, começar tudo do zero como se nenhuma batalha tivesse sido travada e nenhuma guerra tivesse sido vencida? O filme inteiro acontece nesse mero desenrolar de fatos soltos no vento, num clima irritante de déjà vu, como se fosse uma versão alternativa para Uma Nova Esperança. E quando penso, meu caro, no que foi a densa teia narrativa de A Ameaça Fantasma – até então o mais fraco dos filmes – que prepara o terreno para o esfacelamento da República e a ascensão do Lado Negro e o comparo com essa nova abertura de trilogia... Chega dá uma tristeza.

Outro ponto que me chamou atenção foi a superficialidade dos personagens: eles não são construídos, são apresentados, impostos goela abaixo, sem qualquer profundidade emotiva. Assim, “bandidos e mocinhos” agem como autômatos desprovidos daquela imprescindível dimensão humana, seja boa ou má, que dá vida a esses seres fictícios e os põe emocionalmente acessíveis ao público, de modo que O Despertar da Força traz tão somente criaturas estranhas plasmadas numa tela de cinema. E todos sabem, desde os tempos de Aristóteles em seus estudos sobre a poética, como esse vínculo que só a verossimilhança proporciona é fundamental para a fruição tanto estética quanto humana da arte de encenar, de criar sonho. Por isso, com esse episódio VII, o público se torna uma espécie de voyeur que apenas observa à distância um espetáculo marcado pela pirotecnia e o enfado. J.J. Abrams consegue a façanha de transformar o cinema num “lugar onde ignorantes são convidados a ver sofredores”, para citar um axioma de Platão a respeito do teatro que me parece bastante adequado aqui.

Também marca presença nesse novo filme os velhos clichês de sempre. E como é cansativo, caro leitor, o óbvio sendo jogado na sua cara o tempo todo. É como se Hollywood simplesmente não conseguisse superar as velhas e novas questões geopolíticas dos EUA e o sentimetalismo barato das soap operas para fazer do cinema o território do pastiche fuleiro, repleto de alegorias desgastadas e cenas desnecessárias. A Primeira Ordem remete claramente aos nazistas com sua indumentária e gestual, e para não deixar qualquer dúvida até para o mais desavisado fã, o diretor ainda arruma um general galego com sotaque germânico para comandar da tropa. Já o vilão da hora, Kylo Ren, traz o ar muçulmano materializado em sua máscara de contornos prateados, que me remeteram a arabescos, e no traje de beduíno. Isso para não falar – e aqui vai um spoiler – no fato de que ele é o filho-rebelde “mamãe não me deu meu All Star” de Han Solo e Leia, e, como você deve imaginar, rola todo um sentimentalismo meloso. A conclusão desse arco, por sinal, é pra lá de óbvia: no que o senhor acha que deu o encontro de um papai “não faça isso, eu te amo” com um filho “eu sou malvadão mesmo e tenho sangue nos olhos!”? Para mim, num ultraje. A morte de Han Solo foi um desrespeito não só a um personagem importante em toda a construção da história, mas à saga inteira! Poderia dizer que foi o assassinato do personagem certo na hora errada e da forma mais errada possível. Patético...

E o que dizer da protagonista Rey, uma catadora de lixo – na verdade de bugigangas eletrônicas que troca por comida – largada num planeta decrépito que de uma hora para outra se torna arquétipo de amazona da Força? Um desastre, meu camarada! Como pode a Força se revelar assim por pura conveniência, de modo absolutamente involuntário, como se fosse uma simples manifestação fisiológica do corpo, feito um arroto ou uma sede repentina, quando o domínio desta a energia que envolve os seres vivos nasce justamente de inverso do orgânico: do árduo treinamento e da disciplina implacável? É um personagem imbuído de uma metáfora tão pobre sobre a vocação e o destino que dá raiva. Raso e autoexplicativo como personagem de novela da Globo. E ficarei por aqui, porque se me alongar para comentar tudo o que me desagradou, isso deixará de ser uma carta e se tornará uma dissertação.

Eu até entendo a ideia de J.J. Abrams em “rejuvenescer a franquia quase quarentona Star Wars, apresentando-a para uma nova geração sem esquecer dos fãs maduros”, como diz Érico Borgo em sua crítica no site Omelete. Mas, o grande enigma para mim é: será que precisamos mesmo de uma nova trilogia de Star Wars? Obviamente que não, porque nada justifica macular o legado de uma obra que revolucionou a história do cinema, delimitou um novo imaginário e marcou gerações. Contudo, o que me interessa não é a obviedade – mais uma – desta resposta, e sim seus desdobramentos mais subjacentes e incômodos. De tal forma, penso que a “profanação” desse universo cultural chamado Star Wars denuncia o empobrecimento criativo que vivenciamos hoje, a presentificação do passado na forma de produtos culturais dotados de “memória” que dão a ilusão do vintage, do distanciamento e da novidade ante a produção atual marcada pela lógica do mercado e do descartável, e, sobretudo, denuncia o quanto foi reconfigurado o velho esquema que atrelava o consumo – inclusive de bens culturais – às obrigações da diferenciação social e o vincula agora à busca de experiências, ao fomento de modos de vida intercambiáveis e à sensação de pertencimento a uma coletividade que garanta ao indivíduo descentrado, midiático e hedonista de nossos tempos alguma identidade embalada numa pacotilha cool. Pois, como dizem os sociólogos Lipovetsky e Serroy, “o consumo com componente estético adquiriu uma relevância tal que constituiu um vetor importante para a afirmação identitária dos indivíduos”[1]. E quem não quer fazer parte do delírio coletivo, sentir o glamour da apreensão fashionista de um consagrado artigo de época? É um espetáculo triste de se testemunhar.

Por todas estas questões, meu caro leitor, só me resta torcer para que os dois próximos episódios salvem o que este conseguiu destruir. J.J. Abrams me deu pouquíssimos elementos para inferir o que virá na sequência – somente a aparição de Luke, que foi de arrepiar, diga-se. Contudo, sendo pragmático e trabalhando com o que me foi apresentado, sinto um grave desequilíbrio na filmografia Star Wars que será extremamente difícil de equalizar. Espero estar redondamente enganado. É esperar para ver.

Cordialmente,

Bruno Vitorino



[1] LIPOVETSKY, Gilles e SERROY, Jean; A Estetização do Mundo: Viver na Era do Capitalismo Artista, Companhia das Letras, 1ª edição, São Paulo, 2015, pág. 31.

4 comentários:

  1. Bruno, seu texto coloca de forma clara e objetiva uma análise do filme. Infelizmente depois que li seu comentário perdi toda vontade de assistí-lo, pois não quero ter uma decepção como a que tive ao assistir Indiana Jones e Caveira de Cristal. Parabéns por sua abordagem clara que só um conhecedor das 2 trilogias poderia fazer.
    Cristina Monteiro

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  2. Caramba, apesar de concordar com o seu texto, confesso que é tão chato e cansativo quanto o filme. Mas tem um detalhe não da pra condenar o filme. Tal qual "Ameaça Fantasma" que apesar de enfadonha mistrou-se não apenas necessário mas também pouco. Tanto que mesmo após o "Ataque dos Clones" foi totalmente necessário a série animada "Guerras Clônicas" para dar suporte a trilogia. Apesar de não afetar a compreensão, assistir está série nos da outra dimensão dos fatos. Então prefiro, falar que, apesar de chato, confuso e enfadonho é necessário assisti-lo (e os possíveis projetos paralelos) pra apenas ao fim decretar de JJ é ou não Jar Jar Binks. Aguardaremos pacientemente e que a Força esteja com todos.

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  3. Achei seu texto muito bom e bem escrito, diria até que um tanto filosófico. Realmente o filme está longe do que foi as duas trilogias anteriores, é sem pé nem cabeça. No filme os"mocinhos" tornaram-se pessoas patéticas ao invés de guerreiros obstinados. O filme é confuso, sem enredo e cansativo, mas o pior de tudo é que ele transforma Solo e Léa em "pessoas" ingênuas que ignoram totalmente o poder do lado negro da força, subestimando sua capacidade de cooptar novos aliados, até mesmo o filho de ambos. Parabéns Bruno, seu texto é extraordinãrio!
    Ricardo

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  4. Pow, foi exatamente isso. Empurraram muita coisa goela abaixo. A questao politico filosofica (aspectos que mais me fascinam nessa serie, alem é claro da ficção cientifica) foi abandonada nesse filme. Saí do cinema torcendo pra q os outros dous filmes sejam melhores.

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